Busca pelos títulos mais seguros do mundo tem aumentado com a aposta em alta de juros nos EUA, o que afeta bolsa e dólar no Brasil
Quem acompanha notícias sobre o mercado financeiro tem visto nos últimos dias, com grande frequência, que as oscilações dos treasuries americanos --como são chamados os papéis do Tesouro dos EUA-- vêm afetando a performance de ativos no mundo inteiro e preocupando gestores e o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA).
Isso ocorre por uma série de fatores, já que a importância destes títulos vai muito além dos prêmios marginais que o governo americano paga aos seus investidores. "As taxas da modalidade servem de referência até para contratos de crédito, financiamento imobiliário", diz Adriano Cantreva, sócio da Portofino Investimentos.
O aspecto mais contundente destes papéis é a sua segurança. Não há renda mais fixa do que a dos títulos públicos atrelados à maior economia do mundo, que, além da exuberante capacidade financeira, possui pouquíssimas oscilações de juros e inflação.
Nessa linha, existem três tipos de treasuries (independente do indexador utilizado):
- bills, de curto prazo, com duração de até um ano;
- notes, de até 10 anos, a principal referência do mercado;
- e bonds, com prazos de 20 a 30 anos, que podem servir como termômetro para a curva longa de juros.
O que nos traz para o momento atual, em que os bonds têm tido uma procura altíssima. (Antes de entrar no tema, vale lembrar que o Fed tem atribuição dupla: determinar a política monetária dos EUA e, consequentemente, controlar os juros, ao mesmo tempo em que busca condições para garantir o pleno emprego no país.)
Guilherme Zanin, estrategista da Avenue Securities, explica então que, atualmente, o BC americano está sendo mais leniente com gastos (vide os sucessivos pacotes de estímulos), pois busca uma retomada no crescimento do país e, consequentemente, uma maior geração de empregos no pós-crise.
Tanto é verdade que a meta de inflação estabelecida para o país é de 2%, superior aos cerca de 1,6% registrados atualmente.
O problema é que, enquanto o órgão garante que não deve alterar o juro básico do país até 2023, a curva longa está "empinando", juntamente com a expectativa de inflação.
"Os juros de longo prazo saltaram de 0,6% para 1,6% em pouco tempo, o que assustou o mercado", diz Zanin. "Investidores começaram, então, a temer um aumento na inflação e a apostar que haverá reajuste na taxa de juros mais rápido do que prometido pelo Fed, fazendo com que a renda fixa se torne mais atrativa."
Trata-se de uma correlação negativa e um dos princípios básicos do mercado. Quanto mais o juro cai, melhor é para ativos de renda variável, já que o investidor busca alternativas para rentabilizar o seu capital. Quando se trata do oposto, é natural que o mercado fuja dos riscos e se abrigue em títulos mais previsíveis.
Ou seja, o que estamos vendo é uma realocação de recursos para a segurança, que afeta uma série de outros ativos. Na bolsa americana, por exemplo, é possível ver a derrocada do setor de tecnologia, o grande vencedor de 2020. Mais profundamente, o movimento afeta até mercados emergentes, como o brasileiro.
Cantreva explica que, com opções rentáveis em uma economia mais segura, é natural que os investidores permaneçam ali. Isso pode afetar ainda, de maneira indireta, o câmbio desses mercados menos desenvolvidos, que acabam perdendo atratividade frente a outras divisas.
"Além da oferta e da demanda, a taxa de juros do país afeta o câmbio da sua moeda, porque determina a sua atratividade", diz. "Quando a Selic [taxa básica de juros do Brasil] estava em dois dígitos e o Fed Rate era zero, o investidor americano aceitava comprar real para ganhar em cima dessa diferença, o chamado 'carry trade'. Hoje não temos mais isso."
Na quarta-feira (3), Jerome Powell, presidente do Fed, disse que o crescimento dos papéis "chamou sua atenção", mas garantiu que a autarquia está atenta ao movimento e que não existe pressão inflacionária nos EUA. Zanin, da Avenue, entende que, nas circunstâncias atuais, a subida dos juros é natural.
"O spread entre o juro de curto prazo e o de longo prazo está abaixo da média histórica dos últimos 10 anos, 2,5% contra 1,5%. Por isso, vemos este avanço como marginal, dentro do esperado, e não consideramos que o Fed tenha que realizar ajustes na taxa básica de juros antes do previsto."